CINEMA

Renascer: Análise da primeira fase – Por Filippo Pitanga

Para quem chegou de paraquedas na 2ª fase da novela que acaba de começar, confira um resumão da 1ª fase, com análise do esplendor cinematográfico deste grande renascimento da TV

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O remake da novela "Renascer" (2024), adaptando e atualizando com primor o texto original de Benedito Ruy Barbosa no riscado de seu neto Bruno Luperi, vem a trazer inúmeras referências cinematográficas assumidas desde o primeiro episódio (vide matéria anterior, clique aqui), como a decupagem quadro a quadro evocando “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964), de Glauber Rocha; ou o uso da técnica de mise-en-abyme na direção de fotografia de Fabrício Tadeu, ou seja, da narrativa em abismo, de um plano dentro de outro plano, contando mais de uma história dentro das imagens (como pinturas famosas historicamente, vide “As Meninas” de Diego Velázquez).

Com maior foco em outro núcleo narrativo, desde antes de os saltos temporais começarem a ocorrer, que expande as experiências plásticas e cênicas para o distrito da luz vermelha, ou seja, para o lupanário de Dona Jacutinga (outrora eternizada por Fernanda Montenegro e agora encarnada por Juliana Paes), quem diria que, num roteiro a refletir os vários Brasis, seria logo de um lugar discriminado que viria tanto ensinamento de vida e maturidade. Esta faceta da novela, a partir do episódio do dia 26/01/24 em diante, só ampliou ainda mais o contraste perante o outro núcleo, mais religioso num sentido ortodoxo, que, sem incentivo ao esclarecimento, espelhava uma representação do país que vivemos de forma reacionária nos últimos governos conservadores (e ainda estamos tentando superar)...

Todos têm direito à sua crença. Mas todos têm direito também ao esclarecimento, à informação e ao direito de escolha. A dicotomia dos núcleos do remake deste sucesso, em pleno 2024, revestiu-se de novas alegorias com o presente. Não à toa, foi Jacutinga (Juliana Paes), proprietária e matriarca do lupanário, quem trouxe emancipação para Maria Santa (Duda Santos), que, por inocência, jurava ter sido desvirginada com um mero beijo, enquanto seu pai lhe desconjurou e abandonou lá (arrastando a mãe da garota sob ameaça velada de morte, algo nunca pronunciado, mas subentendido).

Para representar tal abandono e virada, um novo atributo técnico a se destrinchar em Renascer: as luzes coloridas e artificiais em cenários fechados (logo em mise-en-scène anteriormente tão focada na luz natural e locações livres e planos abertos, tendo menos cenas em estúdio). O saudoso cineasta Alfred Hitchcock já dizia que o maior avanço da sétima arte após o primeiro cinema não era a sincronização do som, e sim o advento das cores, pois agregam mais às significações da imagem do que qualquer palavra poderia descrever. E seu filme com maior efeito de cores, auge da era Technicolor, foi "Vertigo", em que o azul, o verde e o vermelho são a passagem da inocência para a malícia. As duas faces da protagonista "Femme Fatale" de Kim Novak. Esta representação, agora em Jacutinga ante Maria Santa, foi reiterada na história como "perigosa", porque os homens têm medo de mulheres autoconscientes de si e de seu lugar no mundo. Jacutinga despertar a identidade da jovem, através de sua performance de gênero e sexualidade, também é amor próprio e educação sexual.

Contudo, há de se falar também que, para além das referências cinematográficas na dramaturgia televisiva, que, sim, decerto, enchem os olhos, por exemplificar técnicas consagradas e elegantes num cronograma de produção muito apertado na rotina de vários núcleos da novela, há mais do que isso a se oferecer... Para além de se reconhecer o capricho estético dos detalhes virtuosos, novelas também possuem qualidades de estilo próprio que não podem ser negligenciadas, ainda mais para uma emissora com décadas de experiência no assunto. Há de se elogiar certos usos de quadros típicos de folhetim, mas que foram tratados com apuro e uma combinação de montagem pra revalorizar seu uso. Vide as imagens elencadas abaixo.

Todo o conflito da primeira fase entre Belarmino (Antonio Calloni) e José Inocêncio (Humberto Carrão) foi prenunciado na própria imagem, quadro a quadro, para além do belo texto de Benedito Ruy Barbosa atualizado por seu neto Bruno Luperi (e revigorados na entonação repetitiva e debochada de Calloni e na entrega de Carrão, de fato no papel em que está mais à vontade até hoje). Independentemente das falas, podemos ver no episódio de 27/02/24, por exemplo, Inocêncio comendo no eixo latitudinal, na cozinha, bem próximo à sua aliada Inácia (Edvana Carvalho), à meia-luz amarela, quente e acolhedora. Enquanto que, de forma completamente oposta, temos na montagem, logo a seguir, seu rival Belarmino comendo sozinho numa longa mesa na sala de jantar, disposto de modo perpendicular ao quadro, e sob luz branca e fria, com sua esposa isolada na cozinha no plano de fundo. Esta sequência já demonstra duas perspectivas opostas de ver a vida, que simbolizará o embate.

Adiante, vemos Belarmino desafiar Inocêncio num mesmo quadro, plano conjunto em close próximo ao rosto de ambos, com um pilar branco no background entre eles, como se dividisse a narrativa em duas, separadas e em oposição. Depois, já na casa de Jacutinga (Juliana Paes), Inocêncio pede em casamento Maria Santa (Duda Santos), cada um numa extremidade do plano médio e, lá atrás, no meio deles, o elenco das outras meninas aplaudindo o casal. O primeiro quadro separava personagens, o segundo unia, como uma corrente, o que aparenta uma chance de felicidade que será adiada por novo atentado (com a câmera de baixo pra cima sob o cano da arma). Como boa montagem, temos um desfecho climático de episódio. Afinal, em Renascer, o herói terá muitas mortes e renascimentos...

Vale igualmente ressaltar também a narrativa de Quitéria (Belize Pombal) e Venâncio (Fábio Lago), mais uma vez roubando cenas, tanto de noite quanto de dia... À luz da fogueira, o casal já prenunciava a peleja com a pele suada e iluminada pelas chamas da contenda e do fogo entre eles, o que só aumentava a tensão como num quadro barroco. A seguir, já temos a viagem do casal interrompida pelo grande diálogo de detalhe no rosto dos atores Belize Pombal e Fábio Lago, respectivamente, que aguentam bem esta intimidade com a fotografia, e despejam todo o sofrimento da ignorância em que estavam imersos a piorar ainda mais o anuviamento de seus segredos. Na bela contraluz, como o nascer do sol soprando quente atrás de suas nucas, Quitéria incendeia a tela e cobra com toda a força de sua sinceridade irrompida, após anos de silenciamento forçado, para inquirir Venâncio se ele de fato abusou de sua primogênita ou não: e, pela enorme complexidade que Fábio Lago conseguiu imprimir à interpretação ao contracenar com Quitéria, ambos gigantes, vemos que há muito mais da ignorância recíproca assolando ambos, em negação, sob a pressão dos podres poderes que regiam suas vidas, e sob os quais mesmo a violência de Venâncio eram apenas uma reiteração delegada e corrompida do seu patrão usurpador.

Mas uma coisa é fato e merece ser destacada: Belize Pombal realmente está escrevendo seu nome desde já nos anais da história das novelas. Sua atuação intensa e delicada ao mesmo tempo, conseguindo transitar entre emoções tão complexas quanto o tabu do incesto familiar, já está deixando sua marca inesquecível e com certeza demandará mais papéis de peso num futuro próximo. Seu papel como a personagem Quitéria, mãe da protagonista da primeira fase, Maria Santa (na pele da também revelação Duda Santos), está sofrendo todas as mazelas que não apenas representam todo o patriarcado geracional de época no interior, como também representam estigmas até os dias de hoje nas relações familiares. Questões como, por exemplo, a falta de educação sexual, que serviria para preparar toda nova geração para desafios recorrentes historicamente, como até hoje sofremos todos com o machismo estrutural que silencia abusos e assédio familiar.

No caso do remake da novela, ainda se mantém a dúvida de quem teria feito a primogênita da família supracitada fugir, provavelmente grávida de um ato de abuso. O próprio pai, Venâncio, ainda é um dos princípios suspeitos, interpretado com garra de meter medo por Fábio Lago, num papel extremamente difícil e que poderia descambar para o maniqueísmo, mas ele consegue humanizar e dar vulnerabilidades também (afinal, parece que ele é tão vítima quanto do mesmo sistema que perpetua, em negação para outras relações de abuso que ele não consegue se livrar). Mas Belize, como Quitéria, está trabalhando a câmera como o Sol irradia luz para nosso sistema inteiro, atraindo a razão de aspecto com tanta propriedade que se torna incontornável sentir suas vibrações sísmicas contritas pelo sofrimento familiar – porém, jamais egoísta, e sim generosa, como com o compartilhamento em conjunto, ao lado de Duda e Fábio. Os 3 estão mantendo a tensão da novela em alto nível mesmo quando seu núcleo não toca os outros, ainda que justamente seja o elemento de conexão. Sem falar nos quadros dentro de outros quadros deles, como a belíssima fotografia de hoje com o basculhante dividindo a cena de Maria Santa em 3 pedaços (dividida em dilemas) e o reflexo de Quitéria sobreposto à natureza lá fora!

Já nos episódios finais da primeira fase, as reviravoltas vieram galopantes, como no capítulo 07 de segunda-feira (29/01/2024), feito um bom western, vide reminiscências diretas ao clássico “O bom, o mau e o feio” (1966), de Sergio Leone. – Alerta de spoiler a partir daqui. Foi um capítulo de colecionador, quiçá um dos melhores episódios da teledramaturgia! Faroeste puro, “Renascer” trouxe algumas das melhores cenas de pistoleiros dos últimos tempos, sem falar no protagonismo do cacau (death by chocolate). Mas, antes das cenas icônicas, comecemos pelo uso narrativo dos travellings ou panorâmicas (pan): um plano-sequência sem cortes com a câmera se movendo ou girando em torno de si mesma no próprio eixo.

Panorâmica de Deocleciano (Adanilo) e Jupará (Evaldo Macarrão) trazendo Inocêncio (Humberto Carrão) baleado adentro de casa com Inácia (Edvana Carvalho) pronta pra atendê-lo, e a câmera vira da porta da sala pro interior do quarto, com o reflexo deles no espelho em detalhe no primeiríssimo plano num cantinho da tela, evocando no diálogo a proteção do cramulhão, como se o fundo daquela garrafa que ele carrega norteasse a cena (sem tirar o mérito médico e dos orixás de Inácia e do cordão de contas, que também foi salvo).

Travelling narrativo da câmera se afastando do caixão de Inocêncio, com o povo de branco (ou roupas mais claras) a cantar o lamento pra Obaluaê, e focando na entrada do Coronel Belarmino (Antonio Calloni), que, ainda acompanhado pela câmera se movendo desta vez no sentido contrário, vai parar junto do outro vilão, também vestido de preto, Firmino (Enrique Diaz). -- vale denotar Jupará e Deocleciano chorando e escondendo o riso ao mesmo tempo (olhares irônicos impagáveis junto com Inácia ocultando o rosto pra não se denunciar).

Travelling de Nena (Quitéria Kelly) percorrendo a varanda entre pilastras brancas até ver o "fantasma" de Inocêncio vivinho ao pé da escada.

Travelling advindo da gaveta de cacau sob o olhar de Firmino que tira a arma do coldre, mas vira pra trás com a câmera junto em panorâmica no próprio eixo, já se deparando com Belarmino atrás, mirando primeiro em sua cabeça.

Zênite (ângulo de 90° de cima pra baixo) sobre o carro, com Firmino amarrado, e Belarmino jorrando cacau sobre seu rival ("Come cacau!")

Travelling de perseguição ao Coronel Belarmino sob chumbo grosso, lá fora na plantação, cercado de cacaueiros, até se deparar com outro cano de arma, sua própria espingarda, sem revelar o atirador, câmera sobe em tilt, só pra disparar à queima-roupa, respingando sangue no cacau. Brilhante! O que já de imediato gera a dúvida sobre quem atirou?! José Inocêncio? Maria Santa? Venâncio? Quitéria? Marianinha? Nena? Que falta esse elenco e arco vão fazer!

Entretanto, mesmo sendo sempre difícil vir depois de um baita show, os episódios seguintes precisavam manter a narrativa com alta qualidade. E, de fato, começaram a fazer toda a preparação para a trama por vir da segunda fase, após o salto temporal (a primeira fase só tem 13 capítulos que se encerraram na segunda-feira do dia 05/02/24, tipo minissérie, vale até rever tudo na globoplay).

Existe uma arte que quase não falamos até agora em "Renascer" que é a do não dito. O que fica fora da tela ou do texto, e só aparece de soslaio, pode ser tão ou mais poderoso quanto o enquadrado, como a cabeça de Belarmino fora do quadro na charrete (prenúncio do vácuo de poder deixado).

Dois dos maiores tensionamentos advém do episódio de 30/01/24: o futuro vilão Egídio (que será interpretado por Vladimir Brichta na segunda fase, em seu primeiro vilão) e a pequena filha de Nena (Quitéria Kelly). Esta será mãe de Mariana (Theresa Fonseca), a neta de Belarmino (Antonio Calloni), que regressa por vingança na segunda fase contra Zé Inocêncio por achar que ele fez a tocaia contra o avô e chantageou a avó pra vender tudo.

Egídio apareceu de relance, sem fala. Seu olhar deu a entender, inclusive, desprezar o falecido pai, Firmino, num velório à luz de velas, barroco e vazio. Prescinde de palavras. A mesma coisa a filha de Belarmino. A troca de olhares com Inocêncio já disse tudo, assim como a despedida sepulcral de sua casa, refletida no vidro da janela do carro, junto do reflexo de Nena com o cordão de coração em foco.

Há muito no não dito. Na suspeita do próprio padre Santo (Chico Diaz) que não acredita na inocência de Inocêncio. O não dito no olhar apaixonado cheio de significados de Jupará (Evaldo Macarrão) para Flor (Júlia Lemos), inclusive o pequeno grande detalhe de que o cordão de contas restaurado do patrão agora está com ele. O que não era mostrado na intimidade das meninas de Jacutinga com os clientes foi resumido na frase involuntária, mas não menos vexatória, de Deocleciano (Adanilo) para Morena (Uiliana Lima), quando ele lança que sempre volta pra ela no lupanário por que ela não cobra mais a ele (porque ficou com vergonha de dizer que a amava só porque o amor nasceu a partir da relação profissional, e que pra se sustentar ela mantém outros clientes).

O cordel volta com tiras coloridas de panos penduradas em cordas acima do altar de casamento planejado pro episódio de quarta. Sem falar que o vestido todo rendado de Maria Santa (Duda Santos) é a coisa mais linda.

Porém, há de se mencionar também que o vácuo de poder deixado pelos 2 falecidos de ontem, independentemente da boa vontade de Zé Inocêncio em suas nobres ações, ainda assim será preenchido por quem herda o legado de terras e cacau dos outros. E nenhum poder passa incólume. Talvez, o não dito mais interessante do episódio, inclusive, seja o prenúncio do poder que Zé Inocêncio concentrará em suas mãos e que lhe fará alvo. Ele terá de arcar com as consequências de tanto poder e com os erros pelo caminho, pois é impossível deixar de cometê-los.

Como diria o Tio Ben, grandes poderes trazem grandes responsabilidades (entendedores entenderão rs). E parte desses erros inevitáveis começaram já hoje, pois, impulsivo e temerário, Inocêncio muitas vezes toma decisões precipitadas ou no calor do momento: e a forma como comprou tudo de Nena no próprio velório, mesmo prometendo o justo pelo justo, não deixa de conter um trauma para aquela viúva. Existem pequenas violências no dia a dia que as pessoas podem cometer e que viram avalanches na vida de quem as sofreu, porque, como diz o ditado, "quem bate sempre esquece, mas quem apanha jamais". E não é a toa que a neta de Belarmino virá com raiva de tanto mal entendido que jamais foi sanado...

Começam aí os desvios de discursos...e, não se enganem, todo monopólio de poder grande demais é uma faca de 2 gumes, fazendo com que nasça aí certa mácula no lado sombrio da força de Inocêncio (todo protagonista que se preze precisa ter camadas, então, ei-las!).

Por fim, mas não menos importante, chegou a hora de falarmos sobre o arco final da primeira fase, que começa com três casamentos e dois funerais - e olha que “Renascer” original (1993), de Benedito Ruy Barbosa, fez isso muito antes que o cult “Quatro Casamentos e um Funeral” (1994), de Mike Newell.

A semente do amor foi plantada. Porém, como toda camada narrativa que se preze, já contém doses de tensão pra germinar. Todo o erotismo do episódio de hoje teve um importante coadjuvante nos signos do realismo maravilhoso, tanto o jequitibá-rei quanto o boi bumbá. Porém, enquanto não exercem suas magias e maledicências, operam narrativamente através do espelhamento metafórico de suas previsões futuras. E o espelho é outro coadjuvante indispensável aqui, não apenas como conteúdo, e sim como forma de contar a história plasticamente para a criação de sombras e duplos (doppelganger) pra 2° fase

Logo a primeira cena do capítulo de 31/01/24 foi refletida no espelho da casa de Dona Jacutinga (Juliana Paes), fazendo a câmera girar em panorâmica até alcançar a fresta das dobradiças na porta por onde o padre Santo (Chico Diaz) espionaria antes de entrar (apavorado com a tentação do lupanário)

Os espelhos continuam, literais e abstratos... Literal no quarto de Maria Santa (Duda Santos) com a entrada de Jacutinga que lhe acolhe sob a tristeza na ausência dos pais e irmã mais velha daquela. Ainda na sequência do casamento, na janela da caminhonete e o espelhamento de Jupará (Evaldo Macarrão) e Deocleciano (Adanilo), que irão se inspirar no patrão e pedir suas respectivas amadas em casamento também

Depois, em espelhos abstratos, temos a lua de mel dos protagonistas no jequitibá-rei, para o qual Inocêncio (Humberto Carrão) tenta pedir o mesmo pacto de vida que possui com a árvore para a sua esposa também, mas hesita, por alguns segundos, como se duvidasse que a dádiva pudesse acolhê-la como a ele. Esse átimo de segundo já valeu pra plantar a sementinha da dúvida, da vulnerabilidade, que pode quebrar o encanto da impenetrabilidade em suas vidas. O amor dos dois diante da natureza também foi muito bem filmado, como se ambos fossem raízes e caule da árvore

Outro duplo é o boi bumbá na casa de Inocêncio, reproduzindo a presença do pai dela, mesmo em sua ausência, o medo daquele masculinismo arraigado. Tanto que é logo depois disso que vem a primeira rusga de Inácia (Edvana Carvalho) com a nova "patroa" -- E, ainda que resolvido no próprio episódio em bela cena de sororidade, a competição entre mulheres sempre foi estimulada pelo patriarcado como manutenção de privilégios de gênero, então havia uma estrutura social que dizia ali não poder haver "um duplo" de alguém que se importasse tanto com Inocêncio quanto as duas mulheres da casa.

E outro duplo importante é a segunda casa, outrora de Belarmino, agora pertencente a Deocleciano e sua esposa Morena (Uiliana Lima) e Jupará e Flor (Júlia Lemos). Esta casa também ditará formas diferentes de a vida impactar esses personagens, como já se prenuncia logo no próximo episódio com a primeira gravidez de Maria Santa e também a de Morena, mas sendo que apenas a primeira irá conseguir parir sua criança com vida... Também é interessante que a educação sexual dada à Maria Santa, por sua extrema pureza e inocência perante a vida, talvez não tenha sido dada à Flor por Dona Jacutinga por ter acreditado que nenhuma outra moça de sua casa pudesse padecer de tamanha vulnerabilidade – mesmo sob o olhar atento da guarda dela. Mas se a educação sexual e o amor próprio não forem estimulados desde o princípio de maneira democrática e acessível a todas as pessoas, há de se ver esse lugar de impotência prejudicar principalmente o lado mais hipossuficiente das relações, visto que a maioria dos ritos e instituições privilegia os homens naturalmente (mesmo homens com o coração de ouro como Jupará, a despeito de toda a construção gentil e solícita de seu personagem, não foi capaz de entender o motivo da rejeição de sua esposa).

Com isso, depois da ação e do romance, toda novela que se preze também necessita primar por um bom melodrama, da melhor qualidade. E o preço de todas as dádivas do cramulhãozinho enfim chegaria... Quanto à parte técnica do capítulo de 01/02/24, precisamos debater também outra virtude da fotografia de Fabrício Tadeu e sua equipe de câmera, luz e arte: o foco! Não à toa, o longa-metragem mais recente que vi fotografado por Fabrício, "Onoff" de Lírio Ferreira, no Festival do Rio, que foi quase todo feito de plano-sequência, já trazia um trabalho memorável por parte do foquista (alternando e invertendo quem ficava em evidência no primeiro ou segundo plano sem cortes).

Quanto maior for o ângulo da sua objetiva, mais objetos você terá em cena, e, assim, mais difícil de focar num ou apenas em alguns dentre vários objetos na mesma cena. Geralmente, é fácil: quanto mais protagonismo em tela, mais centralizado no quadro, mais foco você terá, e todo o resto ficará desfocado.

Este episódio mostrou uso impecável do foco pra equilibrar a condução entre os vários dramas envolvidos. Já começa com a Nossa Senhora em tamanho quase real que Inocêncio (Humberto Carrão) trouxe pra sua Santinha (Duda Santos), filmada de baixo pra cima, contra a luz, e com tudo abaixo dela fora do foco. E o tema de hoje foi justamente a fé em foco: na santa ou no cramulhão??

Bem, Santinha pediu para o marido se livrar da garrafa do cramulhão... E padre Santo, que até desculpa pediu pra ela por tê-la negligenciado quando só Jacutinga a acolheu, apoiou Santinha pra Inocêncio tirar a garrafa de lá. A brincadeira com o foco já começou aí, de um pro outro...e a garrafa fora do foco com um brilho no lugar do cramulhão (já que em 1993 ele aparecia, mas foi melhor deixar pra imaginação). A atuação de Carrão com a garrafa foi DELICIOSA!

Depois, a quebra da quarta parede de Norberto (Matheus Nachtergaele) comentando sozinho a trama de hoje no espelho também alterna o foco entre ele, o espelho e os clientes... Seguido de uma montagem pra passar o tempo da gestação de Santinha e Morena (Uiliana Lima), com travelling da direita (razão) pra esquerda (emoção) no caso das amigas, e o inverso no caso do trabalho de Deocleciano (Adanilo) e Jupará (Evaldo Macarrão).

Mas o protagonismo de fato foram os partos das grávidas. Belíssimo zênite de cima pra baixo com olho de Deus acima da banheira, onde nasce José Augusto pelas mãos de Jacutinga (Juliana Paes). Mas vale citar que, antes disso, Inocêncio destratou Morena 3 vezes, com o cramulhão como pivô... Foi só sair dali, aos prantos de dor, que Morena sofreu um aborto (primeira vez que o tinhoso cobra um preço alto). E o foco alternando entre Morena e Deocleciano demonstrou toda a dramaturgia sentida por eles. De forma sensorial, como a luz azul lá fora com a lanterna na mão no breu e enterrando o filho... Ou a Pietá de Jacutinga segurando Morena nos braços como uma pintura barroca. Belíssimo.

Sempre elogio o uso da contraluz, que já estava LINDA -- e foram lá e inseriram esse desafio na narrativa, fazendo faltar luz no episódio de 02/02/24, bem no meio do parto do quarto filho! E é justamente neste momento que vem um dos frames mais belos e mágicos: a luz divina por trás da barriga de Maria Santa (Duda Santos). Foi tão poderosa que pareceu abençoar até nós do lado de cá da tela. Isso é arte em estado puro, quando atravessa a ficção pra realidade. É neste momento que Santinha volta a sentir o bebê se mexer e o parto se torna bem-sucedido, pra mãe e pro filho... pelo menos até amanhecer.

Voltando um pouco no tempo, para atualizar a trama dos outros filhos que nasceram neste ínterim, foi utilizada a boa e velha montagem. Mas, pra fazer a diferença da passagem do tempo e dos momentos felizes antes das lágrimas, em tão pouca minutagem de tela que haveria pra exibir o contraste hoje, foi utilizada a linguagem do vídeo, como se eles próprios estivessem se filmando em super 8 (o ato de se filmar é crucial, produzir sua narrativa). Essa estética de felicidade antes da dor da perda pode ser lembrada no cinema recente com outra produção baiana: "Café com Canela" de Ary Rosa e Glenda Nicácio (Rosza Filmes Produções disponível na @amazonprime e @globoplay). Lá, a mãe perdia o filho, e, cá, o filho perde a mãe. E a trama toda é sobre superar o luto e aceitar amar e ser amada de novo. Em "Renascer" também! Como Chaplin já dizia, há necessidade de uma lágrima pra se reconhecer a potência de cada sorriso

Lembremos que protagonista também pode ser antagonista. E, se for as 2 coisas ao mesmo tempo, melhor ainda. Acostumamos com o lado maroto e malemolente de Inocêncio, mas a interpretação de Carrão já vinha entregando as brechas e fissuras na armadura dourada (falhas ampliam a dramaturgia, ótimo). Agora seu personagem antagonizará o próprio filho João Pedro (Juan Paiva de "M8" e "Nosso Sonho") pela dor inominável da perda da esposa no parto. Essa reviravolta está na inversão do plano do 1° episódio, citação a "Deus e o Diabo na Terra do Sol", quando metade do rosto de Inocêncio estava na esquerda (coração) e agora direita (razão), sob o jequitibá-rei como testemunha.

Além disso, vale acrescentar que a montagem inicial com a trilha de Gal, "Força Estranha", além de criar metalinguagem entre a letra e as imagens, também termina com uma das melhores transições até agora, quando Inocêncio lança o chapéu pro alto e corta do arquivo do vídeo pro tempo presente na novela com Santinha derrubando uma louça no chão, sentindo o primeiro mau pressentimento do episódio.

E lembremos igualmente que a personagem de Maria Santa permanece na trama, pelo lado do realismo maravilhoso, que já havia dito outrora que permaneceria ao lado de José Inocêncio enquanto aquela Nossa Senhora estivesse lá (o que é irônico e irá acrescentar boas contradições cênicas, já que Inocêncio culpou a Santa pela perda da amada, mas é a fé desta em Nossa Senhora que a segurará lá)... Quer dizer, isso se acreditarmos que Inocêncio estará mesmo vendo o fantasma de Maria Santa, e não que seja apenas uma alucinação dele...

É bem interessante ter a personagem se mantendo em diálogo na trama perante o passar da primeira para a segunda fase, como o registro de um instante incólume no tempo, eternizada na figura de Duda Santos, mesmo na troca dos outros artistas em torno dela. Vai criar um bom diálogo extra-temporal com o jogo de cena. E acompanhar de soslaio seus filhos crescerem, ainda mais João Pedro, rejeitado pelo próprio pai, e sendo criado por Deocleciano e Morena, vai ser algo interessante de fato!

Já no episódio de 03/02/24, a atriz Uiliana Lima entregou demais! O antagonismo entre sua personagem Morena e Zé Inocêncio já vinha sendo construído há 2 episódios, mas só hoje eclodiu. Quem diria que, neste embate, ela seria uma heroína tão potente mesmo ante todo o carisma construído do herói até então por 11 episódios (não confundindo antagonista com vilão, que não necessariamente coincidem como sinônimos). Mesmo com toda essa vantagem dele, quem não torceu hoje pela personagem dela, apesar de entender a dor abismal do luto do outro? Com muita generosidade de Humberto Carrão que estava fantástico em sua química de dor perante Morena.

E a sublime cena de Santinha (Duda Santos) voltando como espírito pra abençoar Morena e sua amamentação espontânea pro filho daquela, João Pedro, prova que não será apenas Inocêncio a vê-la daqui em diante (ficando menos a interpretação de delírio e mais a de realismo maravilhoso mesmo). Intensa interação entre Duda e Uiliana também, sendo esta a total protagonista de hoje, com mérito real. Já podemos santificar Santinha como nossa nova "véio do rio" à la Pantanal, com chances de criarem grandes momentos e fotografia ímpar pra representá-la a cada sequência. Outro exemplo foi a sutileza da transição de Santinha atrás de Inocêncio e, logo depois, desaparecendo no ar, quando ele joga a colcha de retalhos do episódio 3 (do primeiro beijo) para trás em suas costas (o movimento do tecido foi suficiente pra ela sumir. Zé não está preparado ainda pra vê-la.

Carrão brilhou como antagonista, com mérito pra babinha na barba (olha que até aqui Belarmino de Calloni era o rei da babinha), com direito a bom continuísmo do fio de baba na barba mesmo sob ângulos diferentes (e continuísmo modesto no envelhecimento dos artistas antes da troca de elenco pra 2° fase, só com poucos fios brancos). Mas erro mesmo só da calça cargo e suéter preta do luto "de marca" de Inocêncio num período ainda de época, antes do salto temporal. A questão da roupa nem é não ser da região, e sim o estilo do personagem que, até aí, era radicalmente outro e, sem explicação, muda do nada, sem tempo suficiente (o salto temporal) pra justificar a mudança de estilo. Mas, quando digo "erro", nem acho isso um problema não. Acho mais engraçado (do tipo curtindo junto e não tirando graça daquilo). Porque o personagem dele era super pé no chão e meio comunistinha, usando roupas gastas com os funcionários, que pareciam de segunda mão. E, de repente, antes mesmo do primeiro salto temporal do episódio de ontem (quando os bebês já se tornam crianças e pré-adolescentes), ele já está com a roupa "Darth Vader" marretando os funcionários com a tal hierarquia que eu disse que antes não havia. A primeira vez que ele é grosseiro com Morena e com Deocleciano, após a morte de Santinha, ele já estava com aquela roupa de luto há semanas, então, pra justificar que ele ficou mais de "elite", menos comunistinha, mais dolorido e fechado, poderiam pelo menos ter esperado pra botar a roupa quando as crianças viram adolescentes e ele as leva pra Salvador, no segundo pequeno salto temporal do episódio de ontem, já demonstrando que ele acha que precisa investir os valores da capital nas crianças, e não os valores mais intimistas do interior.

Deocleciano, personagem de Adanilo, igualmente marcou, fincando o pé mesmo perante seu chefe e defendendo a esposa, a despeito de Zé ter imposto uma hierarquia de poder onde outrora era uma "comuna" - e será seu arco de redenção demandado pra 2° fase. Até Jupará (Evaldo Macarrão) mesmo com 1 frase entrega: "todo mundo é amigo, mas meu chapéu sumiu". E, quem diria que, na dor e rejeição, João Pedro (o ótimo ator-mirim Caíque Ivo) seria o mais curioso e próximo da mitologia do pai, especializando sua relação com ele ("se eu tirar o facão, mato painho igual matei mainha"). É bem interessante dramaturgicamente que, por ter sido rejeitado, seja logo ele dos 4 filhos quem mais procure saber sobre a mitologia do passado do pai -- reiterando a máxima psicanalítica de que a negação é uma dupla afirmação (para negar algo, precisamos conhecer algo em dobro, um primeiro caminho pra conhecer, e um segundo caminho com esforços pra tentar apagar ou anular aquilo).

E logo João Pedro se tornou o único dos 4 filhos, teoricamente, com alguém pra chamar de mãe: isso porque sua madrinha Morena lhe torna especial, enquanto os outros cresceram sem uma figura materna específica, somente a maravilhosa Inácia que às vezes é colocada por Zé Inocêncio num lugar meio de "Val" (Regina Casé) em "Que Horas Ela Volta", como sendo "quase da família", mas não a reconhecendo como segunda mãe. Neste sentido, João Pedro terá até a outra proscrita da fazenda e que Zé culpa pela morte de Santinha, Jacutinga, que também perfilhou João Pedro como todas as almas errantes que ela acolhe tão amorosamente.

Foi importante neste episódio também o reconhecimento disso pelo padre Santo (Chico Diaz), num diálogo poético de reconhecimento da grandeza daquela mulher e da quebra de paradigmas religiosos e dogmas de culpa social, reconhecendo nela a experiência e sabedoria muito maior do que de muita gente por aí! Excelentes diálogos e interpretação de ambos.

É inegável que tudo isso foi construído para chegar no grande momento de transição para a segunda fase da novela, que só ocorre no meio do episódio de 05/02/24, e como foi transcendental a transição da passagem do tempo ao som de Milton Nascimento (e filmaram o próprio Bituca assistindo em casa, emocionado! Vide registro que viralizou na internet, realizado por Augusto Nascimento).

Mas, dentro da transição, o que mais doeu foi a sutileza poética de uma ausência imagética intencional. Tanto falamos sobre o poder do não dito e do poder de sugestão, de não mostrar diretamente e deixar para a imaginação do espectador, tão típico do realismo maravilhoso, mas, aqui, roubou a cena a ausência de Jupará (Evaldo Macarrão). A forma como a narrativa revela que o personagem não sobreviveu para a segunda fase é sublime. Afinal, também não é mostrado como ele morreu (ainda), e a simples não correlação com outro ator na mesma imagem, assim como foi com os outros, já serviu pra partir o coração de todos nós. Não obstante a novela original também não ter contado com a contraparte mais velha de Jupará, ainda assim, em nova adaptação, poderia ter sido modificado por Bruno Luperi, mas, com certeza, mesmo tendo morrido, o personagem conquistou o coração do Brasil e merece ser lembrado mais pra frente (e parece que irá ser, em subtrama da causa de sua morte).

Além de Jupará, a própria transição foi belíssima, principalmente pelo raccord, que é a forma como a edição faz a transição entre dois planos correspondentes, organizando-os de tal forma que não haja contradições entre uma sequência e outra. Belíssimo o raccord pelos pés, especialmente, entre a sequência de personagens pisoteando o cacau, no antes e no depois, bem como nos pés descalços de Zé Inocêncio (Humberto Carrão), trilhando o percurso na varanda de sua casa, para a troca de ator de seu próprio personagem para o intérprete Marcos Palmeira na segunda fase. A conexão de planos pelos pés, mesmo em locais diferentes, intensificou a transição e a relação com a terra.

E o novo triângulo amoroso da segunda fase também promete, e já é prenunciado na metalinguagem da novela "Mulheres de Areia" na TV de Jacutinga, e depois com o duplo de Mariana (Theresa Fonseca) refletido no visor e no vidro à frente de João Pedro (Juan Paiva), já querendo dizer que Mariana representa mais de uma persona ali dentro – um conflito de interesses entre a paixão e o desejo cego por vingança em nome de seu avô Belarmino que deve ser desenvolvido nas cenas dos próximos capítulos.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.