60 ANOS DO GOLPE

Rogério Sottili: "Herzog é um símbolo sombrio da brutalidade da Ditadura"

Para o diretor do Instituto Vladimir Herzog, "a tortura e a violação dos direitos humanos durante esse período deixaram marcas profundas na sociedade brasileira, que ainda reverberam até os dias de hoje".

Vladimir Herzog com sua máquina de escrever.Créditos: Instituto Vladimir Herzog
Escrito en POLÍTICA el

Historiador e secretário dos Direitos Humanos nos governos Lula (2005/2009) e Dilma Rousseff (2015/2016), Rogério Sottili está à frente do instituto que leva o nome de uma das imagens mais criminosas da Ditadura: o assassinato de Valdimir Herzog.

"O Caso de Herzog é indiscutivelmente um símbolo sombrio da brutalidade da Ditadura Militar no Brasil e do clima de medo e repressão que ela instaurou. A tortura e a violação dos direitos humanos durante esse período deixaram marcas profundas na sociedade brasileira, que ainda reverberam até os dias de hoje", diz Sottili.

Nascido em Osijek (ex-Iugoslávia, atual Croácia), Herzor virou símbolo da luta pela Democracia ao ser torturado e assassinado na sede do DOI-CODI, na Vila Mariana, em Sa~o Paulo, em 25 de outubro de 1975.

Vladimir Herzog assassinado no Doi-Codi

Alçado à direção da TV Cultura um mês antes de morrer, Vlado esteve no local espontaneamente após receber, no dia anterior, um convite dos militares. A foto de seu corpo, de 1,75 metro, pendurado na cela em uma corda de 1,63 metro de altura denunciou ao mundo os métodos cruéis da Ditadura.

Em 2018, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) condenou o Estado brasileiro pela falta de investigação, de julgamento e de punição dos responsáveis da tortura e do assassinato do jornalista. Sentença que segue sem ser cumprida.

Para Sottili, esse fato mostra que ainda há um longo caminho para que o Brasil se livre das feridas da tortura e do medo.

"Para superar essa realidade sombria, é crucial uma abordagem multifacetada que inclua políticas públicas de memória, verdade e justiça, como defendido pelo Instituto Vladimir Herzog ao longo de seus 15 anos de existência. Essas políticas não apenas garantem que o passado sombrio seja confrontado, mas também ajudam a construir um futuro mais justo e democrático", disse à Fórum

Leia a entrevista na íntegra:

Rogério Sottili (Wilson Dias/Agência Brasil)

FÓRUM: Como vê o caso de Herzog como um símbolo da tortura e do medo instalado na Ditadura? Quais reflexos isso ainda causa nos dias de hoje?

Rogério Sottili: O Caso de Herzog é indiscutivelmente um símbolo sombrio da brutalidade da Ditadura Militar no Brasil e do clima de medo e repressão que ela instaurou. A tortura e a violação dos direitos humanos durante esse período deixaram marcas profundas na sociedade brasileira, que ainda reverberam até os dias de hoje. 

Logo após difusão da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, à época ainda deputado, o ex-presidente, em entrevista em rede pública de televisão, chegou a relativizar a morte de Vlado com base na narrativa falsa de suicídio.

Quando presidente, perseguiu o Instituto e seguiu proferindo discursos autoritários e desavergonhadamente saudosistas do regime militar.

Por isso, Herzog é um exemplo que nos lembra da importância de enfrentar o passado e buscar justiça, além de nos alertar para os perigos de qualquer regime que recorra à violência e à intimidação para se manter no poder.

Vale lembrar que, apesar de emblemático, o Caso Herzog até hoje não teve a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos cumprida integralmente pelo Estado brasileiro.

FÓRUM: Mesmo após o fim da Ditadura, vimos o uso da tortura e do medo em outras esferas na sociedade: nas cadeias, na ação de determinados policiais - especialmente em áreas mais marginalizadas da sociedade -, em trabalhadores escravizados, entre outras. Mais recentemente, tivemos o governo Bolsonaro, defensor confesso desses métodos da Ditadura, que retomou um regime autoritário, do medo. Como vê esse processo? E acredita que um dia poderemos nos ver livre da tortura e do medo como instrumento do poder?

Rogério Sottili: O uso persistente da tortura e do medo, mesmo após o fim da Ditadura Militar, é um triste reflexo da falha em enfrentar efetivamente os horrores do passado e implementar medidas adequadas para consolidar nossa democracia e garantir a justiça e a proteção dos direitos humanos.

Observamos essas práticas ocorrendo em diversas esferas da sociedade, desde as prisões até a atuação de certos segmentos da polícia, principalmente em áreas marginalizadas. 

Para o IVH, é nítido que os processos de violência perpetrados no passado, ainda seguem vigentes. A recente Operação Escudo é um exemplo disso. A ascensão do governo Bolsonaro, que abertamente defende esses métodos autoritários, apenas escancarou um retrocesso perigoso em direção a um regime baseado no medo e na intimidação.

Parte desse retrocesso deriva do desmonte de instituições que tratam dos direitos à memória, verdade e justiça. E somente considerando a efetivação dessas políticas públicas é que um dia transformaremos essa realidade. 

Exemplo disso, é a não reinstalação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, prevista em lei em 1995, o que evidencia uma falta de compromisso preocupante com a justiça e a memória histórica.

Além disso, temos denunciado ao longo dos anos a interpretação equivocada da Lei de Anistia, como discutido na ADPF 320 - da qual o IVH é amicus curiae, apontando a necessidade urgente de reformas legais que garantam a responsabilização por crimes contra a humanidade. 

Ainda sobre o tema, em 7 de fevereiro último, estivemos com o relator da ação, Dias Toffoli, que sinalizou realização de audiência pública para o 2º semestre com o objetivo de dar andamento na pauta. 

No momento em que sabemos, por meio de investigações, que militares das forças armadas mais uma vez estiveram envolvidos em tramas golpistas e criminosas contra a nossa democracia, o STF avançar com a ADPF 320 é mais uma sinalização de coragem da corte que tanto tem feito pela defesa da nossa democracia. 

Para superar essa realidade sombria, é crucial uma abordagem multifacetada que inclua políticas públicas de memória, verdade e justiça, como defendido pelo Instituto Vladimir Herzog ao longo de seus 15 anos de existência. Essas políticas não apenas garantem que o passado sombrio seja confrontado, mas também ajudam a construir um futuro mais justo e democrático. A sociedade civil organizada desempenha um papel fundamental ao cobrar dos governos eleitos medidas reparatórias e ao exigir o cumprimento das leis e dos acordos internacionais que protegem os direitos humanos.

FÓRUM: Como viu a decisão de Lula, de buscar a conciliação com militares evitando atos de governo em memória dos 60 anos do golpe? Isso não seria uma "tortura" para as vítimas e familiares?

Rogério Sottili: Recebemos com certa surpresa, mas sobretudo com tristeza. Para algumas vítimas e familiares, pode ser interpretada como uma forma de silenciar suas dores e de minimizar a gravidade dos crimes cometidos durante a Ditadura, pois, não se trata de remoer o passado, mas sim de respeitar direitos das vítimas e da sociedade e de garantir que nunca mais se repita, como na tentativa de golpe no 8 de janeiro de 2023.

Mas, mais importante do que promover atos ou qualquer evento de repúdio, nosso entendimento é de que o governo brasileiro deve cumprir suas obrigações de Estado, por exemplo a reinstalação da comissão especial sobre mortos e desaparecidos políticos e o cumprimento das recomendações que a Comissão Nacional da Verdades fez em seu relatório final. É papel do Estado brasileiro fazer cumprir a lei e também os pactos internacionais dos quais faz parte. Promover políticas públicas eficazes que consolidam a democracia em nosso país é o que deve ser feito e o que consequentemente esperamos.

FÓRUM: Fique à vontade para fazer as colocações complementares que ache necessário.

Rogério Sottili: É importante, nesse marco de 60 anos do Golpe, destacarmos e defendermos a importância vital da memória, da verdade e da justiça para a consolidação da democracia no Brasil. A atuação incansável do Instituto Vladimir Herzog e de outras organizações e movimentos que lutam pelos direitos humanos e pela democracia é essencial para garantir que os horrores do passado não se repitam. A cobrança por políticas públicas de reparação, a defesa da liberdade de imprensa e a educação em direitos humanos são pilares fundamentais nessa jornada rumo a um futuro mais justo e igualitário para todos os brasileiros. É papel de todos nós a defesa da democracia e o não esquecimento do passado.