ALISON DOS SANTOS RODRIGUES

Cotas raciais: Justiça determina e aluno barrado por “não ser pardo” pode se matricular na USP

A pedido do juiz, instituição deu explicação inacreditável para reprovação na banca de heteroidentificação: “Cabelo raspado e lábios afilados”

Alison dos Santos Rodrigues.Créditos: Arquivo Pessoal
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O estudante Alison dos Santos Rodrigues, de 18 anos, finalmente poderá se matricular no curso de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Inscrito em vaga destinada a cotas raciais, ele teve a matrícula negada em fevereiro por não ter sido considerado pardo pela Banca de Heteroidentificação da instituição.

Mas uma liminar concedida pela Justiça de São Paulo nesta sexta-feira (5) permite ao jovem de Cerqueira Cesar, cidade do interior paulista, realizar seu sonho acadêmico e profissional. Ele agora tem sua pré-matrícula garantida.

A decisão foi assinada pelo juiz Danilo Martini de Moraes Ponciano de Paula que deu 72 horas para que a matrícula seja feita e o aluno possa, enfim, frequentar as aulas. A multa diária para o não cumprimento da decisão é de R$ 500, com teto de R$ 20 mil.

Para o magistrado, Alison pode ter sido prejudicado pela realização exclusivamente virtual da entrevista que o avaliou em termos raciais. Ele foi aprovado no vestibular de medicina, o curso mais concorrido da universidade, com a reserva de vagas para candidatos egressos da rede pública e autodeclarados PPIs (pretos, pardos e indígenas). Só descobriu que teve a matrícula cancelada em 26 de fevereiro, uma segunda-feira, quando se dirigia para o primeiro dia de aula.

A USP conta com uma banca de heteroidentificação desde junho de 2022. O sistema foi usado pela primeira vez no ano passado com o objetivo de coibir fraudes na política de cotas. A instituição se defendeu na ação do estudante e alegou que ele não reuniria as características necessárias para “usufruir o direito à vaga reservada ao grupo PP (pretos e pardos), por não possuir conjunto de traços fenotípicos” que pudessem defini-lo como negro ou pardo.

O juiz discordou: “A fundamentação exarada, ao menos em sede de cognição sumária, mostra-se genérica, sem referência específica às condições do candidato e em aparente contradição com as fotografias trazidas aos autos pela parte autora”.

Relembre o caso

Alison foi aprovado na primeira chamada pelo Provão Paulista, o vestibular criado no ano passado para alunos da rede pública no governo Tarcísio de Freitas (Republicanos). Ele foi o primeiro da família a ser aprovado em uma universidade pública e também o primeiro de sua escola a passar em medicina.

Quando foi aprovado, os professores da sua escola colocaram um outdoor na entrada da cidade para comemorar. Após sua aprovação, ele fez a pré-matrícula virtual, mas, por ser cotista, ainda precisava comprovar sua condição.

Ao fazer a matrícula, ele enviou duas fotos e os documentos que comprovam ter estudado em escola pública. Um e-mail de resposta o avisou que a comissão "não logrou confirmar sua autodeclaração de raça/cor" e foi convocado a participar de uma reunião virtual para outra avaliação.

A reunião virtual, de acordo com Alison, durou pouco mais de um minuto. Não foi feita nenhuma pergunta ao jovem e ele teve apenas que ler sua autodeclaração. No dia seguinte, soube que havia sido rejeitado novamente.

A mãe de Alison, que sustenta a casa sozinha, é auxiliar de serviços gerais em um abrigo para crianças. Ela se identifica como parda. O pai de Alison é identificado como branco. A família entrou na Justiça para garantir o acesso do filho.

USP explica razões da reprovação à Justiça

A pedido do juiz do caso, a USP se explicou sobre a razão pela qual negou a matrícula de Alison. Na última quarta-feira (3) a instituição alegou que o jovem teria “boca e lábio afilados” e que seu cabelo raspado impediria a identificação das suas características fenotípicas.

A USP ainda aponta que o estudante passou pela primeira fase da heteroidentificação, que exige a análise de documentos e fotos. Mas que nem nessa fase e nem na posterior, quando foi feita a entrevista remota, ele teria sido aprovado.

“Ele deu sua autodeclaração para a Banca de Heteroidentificação, que concluiu que o candidato tem pele clara, boca e lábios afilados, cabelos raspados impedindo a identificação, não apresentando o conjunto de características fenotípicas de pessoa negra”, disse a instituição.

A universidade ainda apontou que usa quatro pré-requisitos determinados pelo Supremo Tribunal Federal em 2017 como os que devem nortear semelhante aviação para ingresso em instituições de ensino superior. São eles: textura do cabelo crespo ou enrolado, nariz longo, cor da pele parda ou preta e lábios grossos e amarronzados. A USP alega que apenas verifica as características do candidato, e não analisa seu histórico familiar.

Após o episódio, que gerou uma onda de críticas ao processo de heteroidentificação, a instituição anunciou que pretende melhorá-lo.